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Daniel Dutra, Diretor
Convés Estudos
Daniel Dutra, Diretor

O Design Capixaba antes do Design

Qual é a marca do design capixaba? Há exatos 10 anos, tomei conhecimento de um Curso de Tipografia da década de 1940. Este texto remonta a história do design capixaba e traz evidências sobre o curso, até então completamente desconhecido pela própria comunidade de design local. Boa leitura!

Uma introdução à história do design no Espírito Santo

Qual é a marca do design capixaba? Qual é a nossa identidade, a nossa história? Esse questionamento me ocorreu há exatos 10 anos atrás, enquanto eu ainda era estudante de design na Universidade. Foi então que decidi mergulhar na memória gráfica capixaba e investigar a nossa cultura. No auge dos meus 20 anos, não havia em mim a pretensão de desvendar qualquer mistério, mas apenas conhecer e reconhecer uma identidade propriamente capixaba.

Essa busca voraz despertou interrogações que excederam o escopo do design, mas também foram para mim um alerta sobre aspectos específicos da história da minha terra, das construções políticas, sociais e econômicas do nosso povo.

Acreditava-se que até a década de 1990, o design capixaba era produzido basicamente por profissionais com outras graduações (Artes, Arquitetura, Engenharias) e, principalmente, provenientes de outros estados, especialmente do Rio de Janeiro. Este cenário começou a mudar apenas a partir de 1998, quando foi criado o primeiro curso de ensino superior de design do Espírito Santo, através do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo.

Juntamente com alguns colegas da UFES, tomei conhecimento de um Curso de Tipografia e Encadernação que funcionou entre os anos de 1942 e 1964 na Escola Técnica de Vitória. O curso, até então completamente desconhecido pela própria comunidade de design capixaba, foi pioneiro no ensino acadêmico das artes gráficas no estado e teve relevante impacto no progresso do mercado gráfico local.

Este texto remonta a história do design capixaba e traz evidências sobre o curso, seu funcionamento, entrevistas com egressos, fotografias sobre as salas de aula e alguns impressos produzidos pelos próprios alunos como exercícios. Boa leitura!

O Espírito Santo em que nasceu o design capixaba

No contexto republicano do início do Século XX, o Espírito Santo apresentava-se em um plano consideravelmente secundário na política e na economia do país. Apesar de fazer parte da rica e influente Região Sudeste, a economia capixaba sofria crises cíclicas geradas pela superprodução do café, o que levou até a um pedido de moratória pelo então governador, Muniz Freire. Era necessário incrementar outros fatores da economia, tais como tecnologia e mão-de-obra especializada.

As fábricas de Vitória padeciam com a carência de mão-de-obra especializada e convocavam operários de outros centros urbanos mais adiantados. Aceitavam-se, inclusive, jovens, meninos e meninas, para trabalharem com mestres habilitados. A escassez de mão-de-obra posicionou-se como um dos problemas mais sérios aos negócios fabris da época. Vê-se, aí, a importância do surgimento de centros de educação técnica.

O Brasil de ontem saiu das academias, o de amanhã sairá das oficinas.

Nilo Peçanha, Ex-Presidente do Brasil, 1909.

Então, vislumbrando o futuro anunciado pelas indústrias que começavam a surgir não apenas no Espírito Santo, mas em todo o país, o presidente Nilo Peçanha, em 23 de setembro de 1909, assinou o Decreto 7.566, responsável por criar 19 Escolas de Aprendizes Artífices nas capitais do Brasil. O objetivo era formar os jovens para o novo tempo que o país começava a viver. Entre elas, estava a Escola Técnica de Vitória, onde funcionaria o primeiro curso de artes gráficas do Espírito Santo.

ETV: A primeira escola de artes gráficas do Espírito Santo

A Escola Técnica de Vitória (ETV) foi fundada em 1909, mesmo ano do Decreto assinado pelo presidente Nilo Peçanha, na região do Parque Moscoso. Apesar de estar localizada na área nobre da cidade de Vitória, é possível observar que as Escolas Técnicas se destinavam ao ensino profissional de jovens desafortunados. Nos considerandos do Decreto 7.566 do presidente Nilo Peçanha estava escrito:

Que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência; (…) e que para isso, torna-se necessário não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como faze-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vício e do crime”. Decreto 19019, p. 1.

Havia, na época, uma ideologia que defendia que a criminalidade tinha origem na ociosidade da classe popular. Desse modo, o Governo Federal entendia que a educação das classes populares podia contribuir para o fim da violência e do crime. 

O primeiro edital de convocação de matrícula da ETV, publicado no Diário da Manhã no ano de 1910, ratificava qual era o perfil do aluno que se esperava receber na escola:

Serão admitidos os menores cujos pais, tutores ou responsáveis possuírem os seguintes requisitos, preferidos os desfavorecidos da fortuna: a – idade de 11 anos no mínimo e 16 anos no máximo; b – não sofrerem de moléstia infectocontagiosa; c – não terem defeitos físicos que os inabilitem para a aprendizagem do ofício. A cada um aluno será apenas facultada a aprendizagem de um só ofício consultada a respectiva aptidão e inclinação. Diário da Manhã, 1910. p. 3.

Os alunos, com idades a partir de 11 anos, ingressavam na ETV na modalidade do Curso Industrial Básico e, no primeiro ano, faziam rodízio nas várias oficinas disponíveis na escola para escolher sua especialidade. Os cursos eram Mecânica, Marcenaria, Tipografia e Encadernação, Serralheria, Artes do Couro e Alfaiataria.

Os alunos podiam estudar em regimes de internato, semi-internato e externato. Os internos moravam na escola e podiam realizar saídas às quintas-feiras, à tarde, e aos domingos e feriados. Muitos alunos só voltavam para casa no período de férias, já que não tinham nenhum apoio financeiro de suas famílias.

O Curso de Tipografia e Encadernação da ETV

Todos os Cursos Industriais das Escolas Técnicas tinham duração de 4 anos e, além de um ofício específico, deveriam ensinar a ler, escrever, contar e desenhar. O desenho era considerado fundamental, não apenas para o ensino das Artes Gráficas, presente no Curso de Tipografia, mas para formar jovens contramestres em todos os demais cursos.

Aula de composição mecânica em linotipia.

No primeiro ano, os alunos faziam rodízio nas várias oficinas – Tipografia, Mecânica, Marcenaria, Serralheria, Alfaiataria e Artes do Couro. Só no segundo ano, iam para a oficina de sua aptidão.

O dia começava cedo na ETV. Os alunos acordavam às 5h30min da manhã, com um apito do inspetor. Em seguida, arrumavam a cama e faziam a higiene matinal. Às 6 da manhã, praticavam a educação física. Logo após, tomavam o café-da-manhã e, depois, assistiam às aulas.

As aulas se dividiam em duas categorias distintas: Cultura Geral e Cultura Técnica. A Cultura Geral abrangia as seguintes disciplinas: Português, Aritmética, Geometria prática, Lições de Coisas, Desenho e Trabalhos Manuais, Caligrafia, Ginástica, Canto Coral, História do Brasil, Instrução Moral e Cívica, Elementos de Álgebra, Noções de Trigonometria, Rudimentos de Física e Química, Desenho Industrial.

Noções gerais de representação gráfica, meios e métodos para o design visual faziam parte das disciplinas que formavam o currículo de todos os cursos da Escola Técnica.

A Cultura Técnica, por sua vez, tratava do ofício propriamente dito. No Curso de Tipografia e Encadernação, no primeiro ano eram tratadas com maior intensidade as matérias teóricas (denominadas por Disciplinas de Tecnologia), juntamente a prática da composição manual por tipos móveis, pois era considerada como básica para o ofício. Os jovens aprendiam conceitos e classificações de famílias tipográficas, suas relações com a comunicação visual e a utilização em projetos de design gráfico.

Aula de composição manual com tipos móveis.

No segundo ano do Curso de Tipografia, com a diminuição da carga teórica, os alunos passavam apenas pelas disciplinas práticas, onde podiam experimentar o processo de concepção e produção de impressos diversos. Assim, seguiam-se as aulas de composição manual e adicionavam-se aulas de composição mecânica em linotipia, impressão e encadernação. Para formar o profissional mais especializado e capacitado, o aluno cumpria os dois últimos anos do curso na área prática em que mais se destacava.

Nas aulas de Impressão, os alunos aprendiam como manusear diferentes máquinas impressoras planas e rotativas. Nas aulas de Encadernação, os alunos aprendiam como confeccionar livretos e cadernos. Os professores explicavam como as folhas impressas deveriam ser dobradas, de acordo com a quantidade de páginas, as características dos diferentes  tipos de papel. Os alunos também aprendiam a manusear máquinas para facilitar o acabamento dos impressos, como a prensa manual, para dobrar o papel e facilitar a costura; e a guilhotina, destinada a cortar, refilar o papel.

Alunos operando as máquinas de impressão, montando e costurando os cadernos.

Os alunos tinham provas escritas e orais mensalmente, todas registradas. Nos exames da oficina, os alunos eram arguidos sobre as noções de produção gráfica. Além dessas avaliações orais, haviam provas práticas nas quais os alunos demonstravam corretamente a utilização das ferramentas e o processo de produção de impressos.

Um dos produtos gráficos executados pelos alunos foi o Jornal Estudantil da própria Escola Técnica de Vitória, o E.T.V. Fundado em 19 de julho de 1943, ele teve sua primeira tiragem de 300 exemplares e foi publicado por 19 anos (1943 – 1962). O Jornalzinho foi uma rica expressão do processo de aprendizagem dos alunos, pois toda a publicação – desde a redação das matérias, passando pelas ilustrações, escolhas gráficas e tipográficas, composição das páginas, até a impressão e acabamento -, era feita pelos próprios alunos do curso sob a orientação de seus professores.

Equipe responsável pela redação, editoração e impressão do primeiro jornal E.T.V. da Escola Técnica de Vitória.

A Oficina de Tipografia e Encadernação, além de produzir todos os impressos da escola (provas, jornais, apostilas, convites de formatura), aceitava encomendas externas, habitualmente de livros, revistas e jornais pequenos, apresentando-se como uma grande oportunidade aprendizado para os alunos.

Os alunos faziam e erravam bastante, por isso a gente já dizia para o autor do livro, o cliente, que não podia ter pressa. A gente não podia nem dar uma data para a entrega do livro. Depois de todo diagramado, era impresso e ia ser encadernado. Montavam-se os cadernos e eram costurados manualmente.

Loadir Pasolini, Ex-aluno do Curso de Tipografia e Encadernação da ETV.

Os trabalhos encomendados que saíam das oficinas da escola constituíam uma renda. O montante recebido era repartido em quinze partes iguais, uma das quais pertencia ao diretor, quatro partes ao respectivo professor responsável pelo serviço e dez eram distribuídas entre todos os alunos da oficina.

Ao final do curso, o aluno estava capacitado para exercer qualquer função dentro da indústria gráfica. 

Na minha época, na década de 1950, muitas indústrias, do Rio de Janeiro e São Paulo, levavam os melhores alunos, recém formados, para trabalharem com eles.

Oseas Wotkosky, Ex-aluno do Curso de Tipografia e Encadernação da ETV.

Das oficinas para a memória gráfica capixaba

Na oficina, cercados por estantes de tipos, linotipos e impressoras rotativas, os jovens alunos realizaram a produção de inúmeros impressos, como o folhetim estudantil E.T.V., concretizando o aprendizado das aulas durante o processo de formação.

A exemplo dos demais cursos ministrados na época, o Curso de Tipografia e Encadernação tinha caráter extremamente prático e profissionalizante para o mercado, formava profissionais capacitados para trabalhar nos parques gráficos locais e, assim, desempenhou importante papel no desenvolvimento e crescimento da indústria gráfica capixaba.

79 anos depois, o Design Capixaba se fortaleceu?

O curso de Tipografia e Encadernação da Escola Técnica de Vitória nasceu devido a escassez de mão de obra capixaba. Porém, não somente na época, segundo relatos de ex-alunos que migraram para outras capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, mas até os dias de hoje, ainda é comum escutarmos que empresas capixabas buscam serviços de Design fora do estado.

Fica, portanto, a dúvida se, de fato, os capixabas deixam de contratar outros capixabas devido à falta de habilidades ou se é apenas um longo complexo histórico de não valoriza as nossas raízes.

Este artigo é fruto de dez anos de pesquisas desenvolvidas pelo LadHT, Laboratório de Design: História e Tipografia, da Universidade Federal do Espírito Santo, sob a orientação das professoras Letícia Pedruzzi e Heliana Pacheco, do qual Daniel Dutra, Diretor da Marino, teve participação extensiva durante os anos de 2011 a 2013.

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Bella
Bella
3 anos atrás

Adorei!! Também sempre me questionei sobre a identidade no design capixaba e a valorização da mão de obra… Interessante perceber como algumas coisas históricas se refletem na cultura até hoje!